A desmobilização oportuna. Por Bruno Cava

“Não dá pra tapar o sol com a peneira, algo está dando muito errado nas estratégias e discursos que, até ontem, pareciam viver num mundo encantado, de volta da maré rosa progressista dos anos 2000”, escreve Bruno Cava em artigo publicado por Rede Universidade Nômade 

IHU

O mais grave é negar a realidade e seguir negando a realidade. Quem quer motivação ou “good vibes”, por favor, encaminhar-se à conta do tuíter do Felipe Neto, que ele faz melhor do que os analistas-ideólogos. Quem quer cacos ideológicos para reagrupar a narrativa, favor dirigir-se aos meios petistas, que eles já estão confeccionando os produtos.

Não, o tal “voto envergonhado” não explica. Claro que há pessoas que dizem uma coisa na pesquisa e fazem outra na urna, claro que há distorções metodológicas em pesquisas e no manejo dos dados pela estatística, claro que há fenômenos de migração eleitoral e voto útil na última hora. Tudo isso não explica, apenas ameniza.

O dado concreto é que, depois de tudo o que aconteceu nos últimos quatro anos, Bolsonaro teve 50 milhões de votos de brasileiros, vindos de todas as camadas sociais e regiões do país, apesar das diferentes proporções em cada uma delas. Bolsonaro teve mais votos ontem do que no primeiro turno de 2018. Depois de tudo o que aconteceu, teve um pouco mais de gente votando nele do que há quatro anos. Para não falar de toda essa inesperada e expressiva eleição de negacionistas da pandemia, teóricos da “conspiração de gênero”, truculentos e trolls para todo gosto. Não dá pra tapar o sol com a peneira, algo está dando muito errado nas estratégias e discursos que, até ontem, pareciam viver num mundo encantado, de volta da maré rosa progressista dos anos 2000.

O pêndulo veloz entre euforia ontem e disforia hoje indica ainda que o modo de conexão das pessoas com a realidade social parece se limitar ao resultado de pesquisas de opinião, faltando uma interpretação mais substantiva sobre como e para onde a sociedade brasileira está andando em suas tendências gerais, como se Lula estivesse descendo de paraquedas para nos salvar.

Lula hoje é o candidato do estado democrático de direito e reuniu ao redor de si uma extraordinária frente ampla, incluindo a quase totalidade da oposição de esquerda, grandes representantes do poder econômico de vários setores, apoios internacionais, Alckmin, tucanos históricos, Marina Silva e vários outros impremeditados apoios na reta final.

Neste pleito, Lula se apresenta como o candidato do sistema, o candidato arquissistêmico, enquanto Bolsonaro e as forças bolsonaristas ocuparam integralmente o campo antissistêmico e antipolítico. Eles têm o monopólio do discurso da ruptura.

É correto dizer que Bolsonaro e os bolsonaristas conduzem uma revolução conservadora e a ruptura é retórica. Sim. No fundo, é promovida a manutenção das desigualdades e das violências históricas, reafirmando o poder de quem já tem poder. Ocorre que, quanto ao sistema de mediações que configura o estado de direito brasileiro, o sistema político e o pacto social subjacente, ele é antissistêmico. Pode ser profundamente sistêmico num sentido histórico, mas quanto ao jogo de mediações, o sistema é Lula e Bolsonaro quer golpear o sistema. Bolsonaro é quem fala a linguagem da recusa, da ruptura, da redenção.

Quando um candidato lambe o cano de uma espingarda, não acho que deva ser encarado apenas como uma anedota. Um líder de extrema-direita na Rússia, aliás, mandou fazer referendos de incorporação de territórios ocupados literalmente na ponta do fuzil. Essa mistura de armas e processo democrático parece contraditória, mas é uma tendência e tem a ver com um outro modelo de gestão do conflito, que é o modelo realista, a força bruta, sem mediações institucionais.

Quando um candidato lambe o cano de uma arma é um sinal do que está acontecendo nos subterrâneos, pois envolve a eleição (afinal de contas, ele está se candidatando), envolve a polarização armada, e envolve o desejo, o tesão. Mesmo quando elucidada quanto a seu interesse, quanto ao que racionalmente seria melhor, considerando a sua posição na estrutura social, a pessoa deseja o bolsonarismo. Ela continua desejando o bolsonarismo. Veja, não é irracional, porque existe uma racionalidade para além da racionalidade dada por interesses sociológicos.

Não adianta repetir que Lula tem bem mais condições de estabilizar a economia, desarmar a polarização e pactuar com os mercados para assegurar a reapropriação de uma fatia da renda para programas sociais. É difícil que a maioria da população, que viveu os anos Lula e os anos Bolsonaro, não tenha a esta altura percebido isso. Eu digo que percebeu. Achar o contrário, que há uma indústria cultural ou ideologia de massas ludibriando a população é colocar-se num patamar de racionalidade superior. Seria esnobar o senso prático e a inteligência materialista do brasileiro.

Apesar de representar corretamente para si, em linhas gerais, o próprio interesse, parte significativa da população deseja a salvação bolsonarista, deseja a polarização (em termos morais e escatológicos) e deseja o acirramento de sua indignação (na forma retributiva, vingativa). E é um desejo visivelmente capilarizado, com uma racionalidade própria que convém compreender para além das petições de princípio e das explicações ideologizantes.

Talvez a diferença para a eleição de 2018 é que, ali, ainda havia um conteúdo de esperança que, com Bolsonaro, o governo seria diferente, e agora só tenha sobrado mesmo a irresignação bruta e um caldo de desespero. A distância entre interesse e desejo se alarga ainda mais, o que aumenta os perigos implicados. Resta saber se a chegada ao parlamento de mais bolsonaristas não vá frear esse ímpeto, o que depende de uma série de outras coordenadas e dinâmicas, a serem analisadas e sopesadas.

Entre outras coisas, a eleição de Lula contribui ou atrapalha nesse processo de amortecimento institucional? Eu avalio que contribui, à luz da trajetória dele.

O que fazer? Algo a ser coletivamente trabalhado em muitos âmbitos, muitas perspectivas, de modo plural. Neste momento, só tenho a intuição a oferecer, depois de matutar a situação presente colocando-a no pano de fundo dos últimos vinte anos. A gramática da remobilização da luta, especialmente contra inimigos bem definidos e identificados, neste momento, apenas acelera a descida pela rampa infernal. O que precisaríamos agora era conseguir introduzir um intervalo, uma pausa geral, um breque desmobilizador, um vácuo de silêncio no trem descarrilado das narrativas.

Nesse sentido, a campanha lulista acerta quando pede para não se vestir de vermelho, para não elevar o tom contra os eleitores professos do outro candidato, para não cair no erro clintonista de tachar a alteridade radical de “cesta de deploráveis” (50 milhões de deploráveis?), e para deixar de ostentar a identidade querida de esquerda e esquerdista, como se fosse um bem em si. Essa orientação pode ter como origem certo pragmatismo eleitoreiro, de qualquer modo, está correta.

Vale trazer à memória a experiência do ciclo de ocupas brasileiras de 2011-12, quando sentávamos na praça sem qualquer bandeira ou cor ideológica, e nos propúnhamos a escutar e falar com as pessoas, com toda a paciência do mundo. Um gesto prosaico, talvez ingênuo, alguns diriam “horizontalista”, mas que traz surpreendentes iluminações.

Ao participar do acampamento da OcupaRio, na Cinelândia, fiquei impressionado como basta você organizar um espaço de livre palavra num lugar de grande circulação urbana, para que as pessoas as mais diferentes se adiantem e falem. Falam das dificuldades do cotidiano, problemas do bairro, das filas dos hospitais, de dívidas, expectativas, decepções, filhos ou de coisas pessoais que pareceriam bobagens quaisquer, falam coisas absurdas, algumas vezes até demenciais, mas que em suas bocas naqueles cinco minutos de liberdade alcançam uma sutil conotação política. Porque estão falando, estão sendo ouvidas. Mesmo que nenhum diálogo surja, aquele momento não se perde. Muitas pessoas têm a chance, nessas horas, de ser um cidadão, quer dizer, uma pessoa que calma e orgulhosamente expressa o que pensa, e não aceita que essa expressão seja tolhida ou ridicularizada.

Apesar das cobranças e frustrações, das limitações, à sua maneira, essas pessoas continuam profundamente ligadas à cidade. Constatar essa ligação no concreto das relações com pessoas que nos são estranhas é de uma força revelatória difícil de explicar.

Não estou falando aqui para sentar na praça agora para virar voto, porque a própria ideia de virar voto pressupõe que se queira convencer a pessoa de algo, o que ela vai perceber e se por na defensiva. Como se as coisas fossem melhorar atuando somente nos curtos períodos eleitorais, e não ao longo dos quatro anos inteiros, no cultivo permanente de práticas de democracia.

Estou sugerindo, em vez disso, a necessária e urgente mudança de postura da parte dos que se julgam estar na vanguarda popular, os politizados e desconstruídos que agem como se fossem revolucionários apenas pelo fato de serem politizados e desconstruídos. Hoje estamos na retaguarda do sistema, o lugar onde precisamos estar mesmo, pois não há como fazer o enfrentamento direto. Porém, uma coisa é estar na retaguarda se comprazendo da própria superioridade, o que apenas aprofundará o desligamento em relação a uma realidade que não nos contempla. Outra coisa é estar na retaguarda disposto a repensar tudo, a recomeçar de novo, a recompor-se.

O mais importante em Lula é ser candidato da conciliação possível e do desarme da polarização. Não tem nada a ver com guinada à esquerda ou volta da maré rosada dos governos progressistas dos anos 2000, nem com euforias induzidas por técnicas de mobilização eleitoral. O horizonte real deve ser muito rebaixado. A eleição de Lula é o terreno para a construção da alternativa futura, que nos cabe.

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